Cisco no olho
(Conto de Natal que conquistou a 2ª colocação no Concurso de Contos e Poesias da Prefeitura de Itaúna - 1987)
* Capricórnio (Pseudônimo usado por mim neste concurso)
E lá estava eu, sentado à mesa do
boteco da esquina, escutando o discurso do Bitola que, após ingerir
quantidade sem conta de líquidos etílicos, cismava em despertar o
espírito natalino em todos à sua volta.
Bitola é um cara esquisito, mas
agradável, com aquele jeitão de artista de filme de terror, barba rala
espalhada em fios amarelados pelo rosto e voz de tenor fracassado. Porém,
amizade e inteligência não lhe faltam, principalmente quando tem oportunidade
de beber algumas por nossa conta.
Gesticulando bastante, ele me
lembrava do “Papai-Noel, personagem querido da nossa infância:
- Você se lembra do sapato na
janela, a esperança de ver o velhinho barbudo passando de trenó e nos deixando
os presentes?
Vi um menino sujo, pés descalços,
chegar a um grupo de pessoas na mesa ao lado e, dali caminhar para o grupo
seguinte.
- Poxa! Me lembro como se fosse
hoje, o dia em que eu e o José, meu irmão, surpreendemos o papai quando ele
colocava nossos presentes nos sapatos...
Aquele menino sujo estava lá,
parado. Olhando ‘comprido’ para a vitrine do boteco onde estavam à mostra muitas balas, chocolates e outras guloseimas.
- Me lembro do dia que eu queria
ganhar uma bicicleta no Natal e meu pai me deu um autorama. Fiquei fulo da vida,
na hora, mas no fundo, até que gostei...
O garçom trouxe outra cerveja e
nos serviu. E lá estava o menino, olhos vidrados nas caixinhas de chicletes que
ofereciam como brinde, uns carrinhos de plástico, uns anéis, miniaturas de
super-heróis...
- E a ceia, cara? Todos os anos,
até hoje, o melhor momento para mim. Peru, um bom vinho, castanha, doces...
hummm, uma delícia!
Tentei corresponder ao entusiasmo
do Bitola, ensaiando até um comentário sobre as ceias do Natal, mas com o canto
dos olhos seguia o menino sujo em seus movimentos.
Lá fora a chuva fina teimava em
cair, com leves pancadas alternando-se com a garoa. Um homem de meia idade
entrou no bar, sorrindo, meio atrapalhado com tantos embrulhos e dirigiu-se a
um grupo de amigos, felicitando-os pela data e se servindo da bebida que corria
à rodo no ambiente. Arrisquei uma “corrida de olhos” pelo local e pude ver
vários grupos numa movimentação frenética, rindo, falando, ouvindo, todos no
ritmo do “Feliz Natal!” Bitola continuava entusiasmado. Alguns acordes de
melodias da época podiam ser ouvidos.
No canto, encostado no balcão, um
senhor bem trajado lia o jornal se mostrando bastante interessado na seção de
economia. Era um especulador, sentenciei. Em meio a tudo isso, a imagem do
menino sujo, passando de mesa em mesa, parando às vezes para olhar a vitrine,
não me escapava.
Uma mulher muito bonita entrou no
bar e foi um movimento geral. Todos voltaram os olhos para admirar a sua
beleza, desejando-a, quem sabe. Enquanto ela ali permaneceu, foi o centro das
atenções. Passou pelo menino sujo como se passa por uma cadeira, sem notá-lo.
A loja em frente estava em um
frenesi total. Balconistas se desdobrando para atender a tantos fregueses ao mesmo
tempo. O barulho da caixa registradora podia ser ouvido ao longe. Muitas
compras, seria um Natal feliz para todos, compradores e vendedores...
No bar, o mesmo clima: muita
festa, muita alegria, só eu – que não perdia o menino sujo de vista – parecia
não viver a magia (e talvez, o menino sujo, também). Magia que nos envolve nas
festas natalinas, quando a esperança renasce, o amor ao próximo desperta e dá
uma vontade louca de sorrir. Sorrir para a vida, não da vida. Viver esses
momentos é o que podemos chamar de dádiva, penso eu.
Ouvir os sinos dobrarem, receber
o abraço de quem amamos, sempre acompanhado de presentes e os votos de ‘Feliz
natal!’ Ah... entrei no clima. Como é lindo ter o Natal para festejar. Ceia,
presentes, sorrisos...
- Ei moço, paga um guaraná para
mim?
Era aquele menino sujo...
Paguei o refrigerante que ele
pediu e ainda comprei para ele um presente na loja em frente. Ele saiu dali
sorrindo, com os olhinhos brilhando de emoção.
- Feliz Natal, moço e obrigado!
Ele seguiu seu caminho...
Bitola, já meio embriagado,
despediu-se também, me desejando ‘toda a felicidade do mundo’. Saí dali
apressado, me sentindo feliz, muito feliz.
À noite, a família reunida, muita
festa, eu lá, cantando... lembrei do menino sujo e por pouco tempo, divaguei.
Voltando à realidade tinha uma lágrima rolando pela face.
É... foi um cisco, dum menino
sujo que me caiu no olho. Ou foi o olho que caiu num menino sujo? Sei lá. Feliz
natal, Uai!!!
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