Andando por sobre as águas?
* Texto publicado no jornal Folha do Povo
Eu estava trabalhando em
Pirapora, há alguns anos, quando a saudade de casa bateu forte e, não tendo
como voltar naquele dia, resolvi ir para um quiosque, armado no meio do Rio São
Francisco, onde serviam um peixe delicioso e cerveja estupidamente gelada. Lá
estávamos, eu, o Flávio Leão – um rapaz que trabalhava comigo, no jornal Folha
de Pirapora – e alguns pescadores que faziam ponto no local até o horário de
saírem para a pescaria, algo em torno de 3, 4 horas da madrugada.
Tomávamos cerveja, comíamos
peixe e jogávamos conversa fora, falando de generalidades, futebol, até que um
dos presentes passou a contar “coisas fantásticas que aconteceram aqui nas
margens do rio”.
O papo interessou e, daí a
pouco, todos estávamos em torno do senhor que narrava histórias quase
inacreditáveis. Contou-nos sobre uma mulher que aparecia nas margens do rio
procurando um rapaz. Perguntava às pessoas se o tinham visto, andava para cima
e para baixo na procura. Só depois de muitos anos é que descobriram que ela e o
filho haviam morrido em uma enchente. Esses e outros casos foram contados,
enquanto tomávamos cerveja e comíamos peixe.
Em certo momento, já meio
embalados pelo álcool da cerveja, eu entendi que era hora de tomar uma
cachacinha. Afinal, dentro de pouco tempo deveria ir dormir e, com tanto calor,
só mesmo depois de um porre. Pedi então uma cachaça. Foi servida.
Falando nisso, não sei se o
caro leitor e a caríssima leitora sabem do calor que assola o Norte mineiro.
Lá, em certos dias, pode-se frigir um ovo no asfalto, tamanho é o calor. E,
para combater o efeito desse clima, só mesmo tomando muito líquido, receitam os
nativos. E como cerveja e cachaça são líquidos – até porque, se fosse sólido eu
comia –, bebíamos bastante.
Mais uma, e outra mais, tomei
cerca de 4, 5 cachaças. Entrava noite adentro, ouvindo histórias e, bebendo. Em
certo momento, o dono do quiosque anunciou. Acabou a cachaça.
Flávio, antecipando-me, afirmou
que aquilo não podia acontecer pois já estava quase pronto o caldo de peixe e,
“sem cachaça, não dá”. Perguntamos então se algum dos presentes saberia
como conseguir o precioso líquido. Apareceu-nos à frente um homem muito magro,
alto – cerca de 1,90m ou mais um pouco – negro, cabelos lisos como os índios,
sorriso triste e olhos colocados em uma cova, tão funda que assustava.
Ele disse que traria a cachaça
dentro de “uns dez, quinze minutos”. Eu, curioso, perguntei onde ele
encontraria a mercadoria para adquirir e ele, secamente, respondeu: “no
Buritizeiro”.
Ri, mas aquele riso largo,
gostoso, demorado... Disse a ele que, se me trouxesse a pinga dentro de 20
minutos, eu pagaria a ele um dia de serviço, além de custear também a garrafa
de cachaça que ele traria. Duvidei, porque Buritizeiro fica do outro lado do
rio, cerca de uns seiscentos metros de água, muita água.
A única maneira de ir a
Buritizeiro, daquele ponto, não sendo atravessar o rio, em meio às corredeiras
– de canoa seria muito difícil, ele chegaria à outra margem bem mais abaixo do
ponto que estávamos e teria que andar muito até atingir a cidade – era passar
pela ponte de metal ou, uns quinhentos metros acima desta, pela ponte de
concreto. De carro, esse trajeto tomaria uns quinze minutos. À pé, não menos
que quarenta.
Mas o homem aceitou o desafio.
Pegou o dinheiro e, na minha frente e de todos os presentes, caminhou por sobre
as águas do Rio São Francisco, chegando rapidamente à outra margem. Dentro de,
no máximo dez minutos, lá vinha ele, novamente caminhando por sobre as águas.
Eu, Flávio e alguns dos presentes, mudos, assistimos àquela demonstração de
poder acima do humano. Outros pescadores olhavam para nós, rindo do nosso
espanto. Ele chegou, colocou a pinga em cima da mesa. Serviu-se de uma dose e
me disse:
- “Moço, não precisa pagar
meu dia de serviço não. Eu gosto de servir aos amigos. Se precisar de mim pode
pedir de novo”. Afastou-se caminhando em direção à canoa para dar início à
pescaria.
Eram quase três horas da
madrugada. Eu e o Flávio não bebemos mais, fomos embora. Não dormi o resto da
noite, sempre com a imagem do homem andando por sobre as águas.
No dia seguinte, voltei às
margens do rio para conferir o acontecido na noite passada. Fiquei ali,
admirado, olhando a outra margem e imaginando o que o homem tinha feito para
atravessar o rio.
Foi aí que vi um menino,
rapazinho de uns treze, quatorze anos, vir correndo por sobre as águas,
atravessando o rio. Acerquei-me dele e quis saber como ele fazia aquilo. “Foi
meu pai que me ensinou o caminho, eu venho pisando nas pedras. Sei onde está
cada uma delas...”.
Voltei a sorrir. Tudo tão
simples... Basta saber o caminho das pedras. E eu que quase jurei não beber mais...
Comentários
Postar um comentário