E agora, “que qui eu faço?”

 

Redigia crônicas para o jornal Folha do Povo, início dos anos 2.000. Era dado o tema e produza o texto sobre aquele tema, para o fechamento da edição, calculando o espaço que precisava ser preenchido. Assim, produzi vários textos como este abaixo.

 

Passando pela redação da FOLHA, peguei as informações de praxe para começar a produzir material para a edição da semana. Para a crônica, me foi dado o tema que versaria sobre a necessidade, ou não, de se ter um pente – isso mesmo, aquele objeto formado por uma haste endentada, que passamos por sobre e entre o cabelos para que eles obtenham a forma desejável à nossa vaidade para que possamos sair às ruas.

Lá fui eu, rua afora, raciocinando sobre o que poderia ser escrito sobre aquele objeto da maior inutilidade na redação da FOLHA. Renilton usar pente é gastança desnecessária, pois com pouco tempo ele pode ajeitar, um a um, manualmente, os poucos fios de cabelo que lhe restam. Por sobre seu cocuruto acastanhado, alguns fios espalhados como se fossem torcedores do América – quase 200 fios ao todo – portam-se de maneira rebelde, ficando sempre de pé, em posição de confronto.

O Pablo, chargista de ótima cepa, tem por costume apenas molhar a cabeleira – um punhado de fios embaralhados, dando aparência daquele ninho de passarinho apelidado de “Garrancho” – e balançá-la até que a maioria da água lhe escorra corpo afora.

Nós, que vos falamos via textículo, mantemos por sobre a cabeça toda a rebeldia da juventude, em fios que não aceitam o direcionamento do pente e teimam em dançar rock todo o tempo, mesmo que eu não seja muito chegado ao rock, assim, cotidianamente, todo dia. Fiz até um teste de vocação com os fios de meu couro cabeludo e o resultado foi assustador: nenhum deles tinha vocação para cabelo. Vamos levando então a coisa do jeito que dá. Pente é coisa que não combina com a redação da FOLHA, pensava eu. 

Ainda pensando no que escreveria sobre aquele tema complicado, entrei no lotação que me conduziria até o lar. Tranquilo estava eu quando vi surgir do meu lado um homem enorme. Gordo, muito gordo mesmo. Alto. Sentou-se em um banco ao lado e ocupou o lugar de dois passageiros. Olhei para ele, estava chorando. Chorava copiosamente, deixando escorrer um rio de lágrimas por aquela bochecha enorme. Soluçava...

Eu, curioso, não deixei passar a oportunidade como faziam os demais passageiros. Me aproximei e perguntei o motivo do choro, se podia ajudar, etc. Ele me olhou com um jeito infantil e falou: “não dá mais. Ninguém pode fazer mais nada...”.

Pensei na morte de alguém querido, na perda de algo muito valioso para ele e tentei consolá-lo: “a vida é assim mesmo. Nem tudo pode ser como a gente deseja. Deus é que decide e tem que ser feita a Sua vontade...”

“Mas aí é que está o problema, Deus queria de outra forma... fiz tudo errado... eu fiz não, você também fez, todos aqui fizeram...”, exaltou-se ele e voltou a chorar, ainda mais convulsivamente.

Não, não vai ficar assim – pensei – se o cara tem problemas, tudo bem, mas eu não tenho culpa. Voltei a questioná-lo: “que negócio é esse? Você pode estar insatisfeito com alguma coisa, mas eu não, nem as outras pessoas. Nós não temos nada com isso...”.

“Têm sim, e eu explico”, falou-me ele que, imediatamente passou a explicar seu drama: “pra mim, tudo começou com meus pais e com o senhor e os outros deve ter acontecido o mesmo. Meus pais me falaram que Natal era época de trocar presentes, de comer peru, de beber vinho, de rir, pular, alegrar...”

“E não é?”, interpelei.

“Claro que não!”, quase gritou ele. “Natal desse jeito que me falaram, é assim: você corre nas lojas, nos supermercados, compra um monte de coisa, faz uma puta ceia, começa a trocar presentes e comer lá pelas dez da noite, a beber, bem mais cedo. Dá meia-noite, abraça todo mundo que está por perto, ri, come mais... Lá pelas duas horas da madrugada tu tá cheio de comida, de porre... aí, dorme, acorda no outro dia com uma puta dor de cabeça e não querendo nem ver comida... isso até lá pelo meio do dia. Depois torna a comer e beber. Se sai às ruas é educado com todos, mas passa o Natal e aí? E depois?”

Eu tive de ir para casa com aquela pergunta, ainda sem resposta e a crônica? Bem, a crônica, era sobre o que mesmo?

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