Pedras que andam...
- Crônica publicada no jornal 'Spasso', de Itaúna, em 13 de setembro de 1997
Sabem no que dá a união da imbecilidade carioca e a burrice
paulista? "Ah, eu tô Maluf!!!", pois é. Foi-se o tempo em que os jovens, na falta
de opções de lazer, as inventavam. Eram os tempos do “beijo, abraço ou aperto
de mão”, das festinhas familiares com o ‘som’ (aparelhos de) dos amigos, das
serenatas com o gravador, quando o seresteiro não sabia cantar.
Falando nisso, lembro dos meus quinze anos quando, já de
barba – rala é verdade, mas nem por isso menos barba – morando sozinho em sete
Lagoas, trabalhava no Jornal ‘A Notícia’, daquela cidade, de propriedade do
Gilberto Menezes. Meu horário de trabalho divergia do horário da maioria dos jovens da
minha idade, pois pegava no batente às 16 horas e seguia noite adentro, às
vezes a madrugada toda. Portanto, convivia com rapazes e moças, muitas moças –
umas, nem tanto, mas outras, sim – com idades bem superiores à minha. Aprendi
naquela época que a melhor diversão do mundo estava num copo de conteúdo etílico,
uma dançarina sempre à mão e, para os momentos de puro romantismo, nada melhor
que uma serenata. E assim me via eu: solteiro, jovem, independente, com um
salário razoável, ‘perdido’ em meio à boemia setelagoana. E, lá, colhi muitos
momentos para escrevinhar aqui neste espaço. Num dos casos, ocorreu o seguinte:
Dois dos outros funcionários do “A Notícia”, Roque e Homero,
eram seresteiros convictos. Não podiam ver uma mulher mais bonitinha que a
seguiam até descobrir onde morava. Daí, na primeira oportunidade, ofereciam-lhe
uma serenata. Só que, devido ao nosso horário de trabalho, normalmente nossas
farras aconteciam altas horas da madrugada. E foi assim quando o Roque conheceu
uma menina muito bonita, que morava um pouco afastado da área central da
cidade. Preparou para ela, como fazíamos sempre, uma serenata. Tudo pronto:
salgado para tira-gosto, muita cachaça, cervejas e, o melhor: dois amigos
músicos. Um, tocava violão, o outro, cavaquinho.
Nos armamos com os apetrechos e fomos “acordar” a amada do
Roque. Ao todo, oito marmanjos. Os dois músicos, amigos do Roque, tocavam. Ele,
o Roque, cantava. E nós outros fazíamos o coro de acompanhamento e, lógico,
enchíamos a cara. No caminho para a casa da moça, paramos perto das casas de
todas as “musas” que conhecíamos e fomos embalando os sonos e sonhos e...
bebendo.
Defronte à casa de uma senhorita da maior supimpitude, por
quem me engraçara na feira – aliás, outra fixação deste texticulista – pedi que
caprichassem. E atenderam: “Chão de Estrelas” (Minha
vida era um palco iluminado/Eu vivia vestido de dourado/Palhaço das perdidas
ilusões/Cheio dos guizos falsos da alegria/Andei cantando a minha fantasia/Entre
as palmas febris dos corações...), “Negue” (Negue, o seu amor, o seu
carinho/diga que você já me esqueceu/pise machucando com jeitinho/Esse coração
que ainda é seu...), “Ronda” (De noite eu rondo a cidade/a te procurar/sem
encontrar...) e eu lá, todo prosa. De repente foi aberta uma janela. Nela
apareceu um senhor muito forte e com cara de poucas amizades.
Foi logo perguntando para
quem cantávamos. Informei que era para uma morena, muito bonita, que ali morava.
Adiantei que, ao conversar com a moça, soubera ser ela de nome Elvira. Mocinha
nova ainda e que eu, a partir daquele encontro, estava enamorado. Perguntei,
finalmente, se ele era o pai da moça, pois queria pedir o consentimento para
namorá-la.
Só me lembro que ele saiu
pela janela mesmo, com um porrete na mão e partiu pra cima do nosso grupo que,
correu primeiro, para saber depois que aquele era o marido da Elvira. Um
caminhoneiro que viajava muito, enquanto a esposa namorada rapazinhos das
redondezas...
E o pior: na fuga, deixamos
bebida e comida para trás. No dia seguinte, na região só se falava do
‘despacho’ de macumba que fizeram naquela esquina. “Muita cachaça, cerveja,
rum, vinho... e a quantidade de salgadinhos??? Só cê vendo!”, comentavam.
Recompostos e distantes do
perigo, no reabastecemos em um bar – em Sete Lagoas, naquela época, já existiam
bares que funcionavam 24 horas. Continuamos rumo à casa da amada do Roque.
Esse, bebedor de rum, já começava a acusar o álcool, lá pela décima dose, embolando a língua e dando leves
cambaleadas.
Por volta das duas horas da
madrugada, chegamos em frente à casa da dita moça. Os postes daquele quarteirão
– parecia coisa de moleques – estavam todos sem lâmpadas. Uma escuridão danada.
Paramos então em um local onde, segundo o Roque, deveria ser
o mais próximo da janela da moça. Antes de iniciarmos a cantoria, fizemos mais
uma rodada de bebida, que era para animar. Os músicos ajeitaram-se. O
violonista apoiou a perna em uma pedra, grande, escura, que estava no meio da
rua. Aí, o músico do cavaquinho sentou-se naquela pedra. Nós, restantes, nos
acomodamos por ali.
Após a introdução dos músicos, Roque começou a cantar “Ronda”,
com jeito de quem entendia do assunto. Estava entusiasmado. Cantava melhor que
o costume naquela madrugada. Seguiram-se três músicas. Uma luz foi acesa no
quarto. Mais uma música e a moça abriu parte da janela, ficou ali, ouvindo o
pretendente cantar.
Mais romântico que aquele momento, só mesmo o encontro dos
personagens centrais ao final da novela. Falar nisso, vocês já repararam que
nas novelas os mocinhos – eles e elas – levam ferradas os 199 capítulos da trama, para
“viverem felizes para sempre” no último capítulo? Um amigo meu, inclusive,
falava que se fosse ator de telenovelas, queria fazer só papel de ‘bandido’.
Assim, ia levar vantagem a novela toda, beijar todas as atrizes, ser dono de
tudo o tempo quase todo. Depois, morreria no penúltimo capítulo...
Bom, voltemos à serenata, que é o nosso caso. Roque
esmerava-se em fazer boa apresentação. Tomou mais uma dose de rum e catou, com
a voz grave e empostada: “Maria Bethânia, tu és para mim...”, só que trocou o
nome da personagem, propositalmente, para “Maria Conceição”, que soubemos
naquele momento ser o nome da moça. Ela abriu mais a janela, mandou um beijo no
ar para o Roque que, emocionado, “pegou” aquele beijo e o guardou no coração, em
gestos, emocionado.
Nós estávamos curiosos para ver melhor o rosto da moça.
Roque estava querendo se aproximar, chegar mais perto da janela da Maria
Conceição. Tivemos então a (in)feliz ideia de subir na pedra onde estava
apoiado o pé do violonista. Foi subir e parecia que a pedra se movia. E movia
mesmo. De repente, a pedra “cresceu” e saiu correndo. Fomos ao chão. E uma
gargalhada incontida varou os ares...
Humilhados – o Roque muito mais – por fazer aquele papelão, na
vista da moça, da Maria Conceição – era demais. E pior, confirmamos que a
risada veio da janela de onde antes emanava romance...
Saímos dali às carreiras, para nunca mais voltarmos. Roque sentiu mais ainda, pois além do tombo da ‘pedra que andou’, viu seu amor acabar em risadas de deboche. Ah, a ‘pedra’, era uma vaca, que levantou-se dom o peso da turma e saiu correndo.
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