Um Sonho
Esse texto foi escrito em 1990.
Marta fixou os olhos no teto, na
tentativa de se concentrar em alguma coisa enquanto aquele corpo masculino movimentava-se sobre ela, arfando, gemendo... como um porco na derradeira hora.
Imediatamente lhe vieram as lembranças que ela tanto queria esquecer: um homem
baixo, gordo, a lhe dominar, jogando-a ao chão, rasgando-lhe as roupas e,
finalmente, a possuindo a-ni-ma-les-ca-men-te... e depois as ameaças, o nojo, o
vômito..
Marta fora dispensada do emprego
poucos dias depois pela esposa de “seu” Almeida, como era conhecido aquele...
tarado. Isso mesmo, aquele tarado!
- Imagina, uma negrinha dessas se engraçando com o meu Almeida, homem íntegro, que até ajuda o padre na missa?, dissera a ex-patroa, justificando a demissão.
Novamente Marta sentiu nojo. Num gesto brusco se livrou do corpo que estava sobre ela e, chorando, juntou suas coisas – alguns trapos e um pouco de dinheiro. Saiu dali correndo, sem a mínima vontade de olhar para trás. “Vender meu corpo, nunca mais”, pensou ela.
Amanheceu um domingo lindo.
Marta, olhos fixos no teto, não dormira ainda um segundo. Passara o resto da
noite imaginando o que faria da sua vida. Certeza, só uma: não mais se
prostituir. De um salto, desceu da cama e se dirigiu ao banheiro. Que bom, pelo
menos um banheiro no quarto, assim não precisaria olhar para ninguém logo de
manhãzinha.
Abriu a ducha e deixou escorrer a
água fria. No espelho, um pouco envelhecido, refletia a imagem
de um corpo quase perfeito. Negra, pernas grossas, seios firmes e pequenos,
rosto bastante atraente, cabelos trançados... Assim era Marta. Uma bela mulher,
aos 18 anos, despertada ainda menina para os sofrimentos da vida.
De volta ao quarto de hotel que
alugara na noite anterior, sentada aos pés da cama, ela pôde reparar o cômodo
que, nos próximos dias seria seu refúgio, sua fortaleza a lhe proteger dos
perigos, tantos. Ao centro, uma cama um pouco grande para uma pessoa sozinha. No
canto, uma cômoda, com uma cadeira. Um espelho preso à parede, que dado à sua
posição, “vigiava” todo o ambiente (quarto e banheiro), mostrando todos os
cantos. Do outro lado, um guarda-roupas pequeno, de duas portas. Era o bastante
para tão poucas roupas. A janela dava para uma ruazinha apertada. Tinha-se a
impressão de que, esticando os braços, poderia tocar o prédio do outro lado. As
paredes pintadas em tom creme. Um quadro de paisagem, pendurado no alto, sobre
a cabeceira da cama. Não era uma suíte de hotel de luxo, pensou, mas estava
bom para o quanto podia pagar.
Ainda temerosa, Marta abriu a
porta e saiu para o corredor. Era muito cedo e os outros hóspedes aproveitavam
para ficar mais um pouquinho na cama. Desceu dois lances de escada e parou no
meio de um salão comprido, que servia de recepção e sala-de-estar do hotel. Ela
ficou ali parada, olhando o vazio, sem saber o que fazer...
- Ei, minha filha, acorda ou
volta para a cama. Você está dormindo? Vem tomar um café, menina, que aí você
desperta!!!
Refeita do susto que aquela voz
carregada de afeto lhe causara, Marta pôde ver Maria. Uma mulata que andava
pela casa dos quarenta anos, com as mãos na cintura a lhe sorrir, docemente.
Teve vontade de correr para ela. De abraçá-la. De chorar no seu ombro, de
contar sua vida. Se conteve e se dirigiu para a copa. Não sem encher os olhos
de lágrimas. Aquela senhora a deixara confusa. Estranhos sentimentos aqueles
para com uma pessoa que nem sequer lhe fora apresentada...
Parece que lendo seus
pensamentos, a mulata se adiantou e disse se chamar Maria, ser a cozinheira,
arrumadeira, lavadeira e, claro, “muito amiga de todos os hóspedes do Hotel São
Miguel”. Sim, esse era o nome do hotel: “São Miguel, o seu segundo lar, com
certeza!”, completou a sorridente Maria. O café demorou cerca de duas horas,
sempre embalado pela conversa de Maria, que tanto falava quanto trabalhava. Após
a conversa e os conselhos de Maria, “indispensáveis para se dar bem no São
Miguel”, Marta saiu à rua. Aquela recepção a despertara completamente e, sendo
assim, o melhor era comprar um jornal para começar a batalha pela procura por
um emprego.
Após o almoço, ali mesmo no
hotel, quando foi apresentada a vários outros hóspedes, Marta se trancou no
quarto, a sua ‘fortaleza’. Abriu o jornal e começou a folhear as páginas de
classificados, lentamente. Assim, adormeceu, tendo acordado somente no início
da noite quando Maria veio lhe chamar para “tomar o caldo de reforço, que ajuda
a enfrentar a semana”.
Depois de mais algumas horas
agradáveis, como Marta há muito não vivenciava, com Maria sendo o centro das
atenções, contando causos, estourando pipoca, comentando as cenas da tevê,
Marta voltou para o quarto, claro, com um bule de chá, “quentinho, que é para
esquentar do frio”, recomendou Maria.
- “... ontem parecia tudo perdido, hoje encontro esse anjo, que é Maria...”, pensou Marta e sorriu ao se lembrar da Vó Julieta, outro anjo na sua vida que talvez ainda estivesse lá, a esperar a sua volta à terra natal, cerca de 500 quilômetros dali... Marta separou alguns anúncios de emprego que ia conferir no dia seguinte e se deitou. Antes de dormir ouviu ainda uma música que tocava em algum lugar ali perto. Aquela voz suave a lhe dizer tanta coisa bonita, parecia estar cantando só para ela. Marta dormiu sorrindo. E como era bela assim. Parecia uma menina... Sonhou os melhores sonhos naquela noite. E o dono da voz povoou-lhe o sono de todas as formas, milhares de rostos, todos lindos, a lhe oferecer rosas...
Seis meses se passaram. Marta já
arrumara emprego em uma loja e até pensava em se matricular no curso supletivo
no próximo semestre. Maria lhe dera amparo, onde se apoiava nos momentos mais
difíceis. Daquele primeiro domingo no São Miguel só ficara a lembrança da
música, que às vezes se repetia nas noites dos fins-de-semana, mas não de
maneira tão especial quanto da primeira vez.
- Menina, eu tenho que preparar
um almoço no domingo, na casa de uns ricaços e estou precisando de ajuda. Quer
ir comigo? – era Maria a convidando para acompanhá-la nos seus bicos
ocasionais. Marta nunca se negava aos convites de Maria e, naquele domingo, foi com
ela ajudar no preparo do almoço de tais
ricaços. A casa onde seria servido o almoço parecia cenário dos filmes de
Hollywood. Um verdadeiro castelo. Aquele “bico” renderia bons trocados para as
duas.
Enquanto ajudava Maria a preparar
as iguarias, Marta pôde ver várias pessoas. Uma senhora toda “esticada”,
parecendo manequim de propaganda de cirurgia plástica – conforme a definição de
Maria – dava as ordens. Três serviçais a acompanhavam, atendendo a seus
desejos. Um senhor grisalho, bastante simpático – deveria ser o dono da casa –
divertia-se com toda a arrumação. Algumas pessoas à beira da piscina,
conversando, bebendo, e um rapaz na sala, parecendo que estava ali a
contragosto. Se isolara num canto e lá ficara, folheando algumas revistas.
Marta reparou-lhe os traços e
aprovou o que via: jovem, bom físico, aparência de seriedade, boca sedutora,
olhos enigmáticos. Em certo momento viu o senhor grisalho se aproximar do
rapaz e repreendê-lo por sua atitude antissocial. Pudera ouvir com clareza o
final da reprimenda: “se você quiser fazer sucesso vai ter que tratar bem esse
pessoal...” Após deixar a cozinha limpa e receber o pagamento pelo serviço,
Maria veio anunciar a Marta que teriam uma carona até o São Miguel, pois lá
fora caía uma tempestade. Marta nem notara o início da chuva, tão compenetrada ficara
nos seus afazeres.
Lá fora, na garagem, a surpresa
foi ver o rapaz ao volante do carro que as levaria de volta para casa. Maria
lhe apresentou o rapaz: - Paulo, filho da dona Hortência, mas muito gente boa,
‘apesar’ da dinheirama... (riram) De vez em quando passa lá no hotel, para uns
dedos de prosa, completou Maria.
- Prazer – disse-lhe o rapaz e voltando-se para Maria: dinheiro não é defeito Maria, defeito é achar que se é um deus porque tem dinheiro.
Bela observação, pensou Marta. Lindo, educado,
inteligente, concluiu seus pensamento. Ah... suspirou, ao mesmo tempo em que
tentou mudar de pensamentos. Paulo não lhe daria a mínima, pensou. Depois
daquele dia o rapaz apareceu no hotel mais algumas vezes, uma delas acompanhado
por uma loura, bastante bonita.
Segunda-feira difícil foi aquela.
A uma semana do Dia das Mães, faltaram duas colegas e o serviço duplicara na
loja. E ainda por cima, aquela chuva ‘fora de hora’. Justamente no final do
expediente. Marta, sem sombrinha, escondia-se embaixo de uma marquise,
aguardando que a chuva diminuísse para ela pegar o ônibus. Parado à sua frente,
um carro. O motorista buzinando e gesticulando. Olhou para ver quem estava
sendo chamado, quando reconheceu o motorista: Paulo! Ele estava ali, parado no
meio da rua, lhe oferecendo carona. Ao deixa-la na porta do hotel, o rapaz a
convidou para jantar com ele na sexta-feira, num restaurante ali mesmo, próximo
do hotel.
Deitada, Marta repassava seus
últimos meses. Prostituta, regenerada, acolhida por Maria, quase feliz...
Paulo. Paulo era a felicidade e o desespero. O que ele faria se soubesse... Ele
é rico, eu pobre. Ele branco, eu negra. Ele um rapaz sério, eu ex-prostituta.
Não vai, não tem como dar certo! Viveu a pior semana de sua vida. Na sexta,
após analisar todas as possibilidades, Maria sabia o que fazer...
No horário marcado, encontrou
Paulo na porta do restaurante, ansioso. Cumprimentaram-se e entraram. Ainda bem
que a mesa escolhida pelo rapaz era bem afastada, assim ela poderia escapar aos
olhos dos curiosos. Sentaram-se e, imediatamente, Paulo pediu licença para se
ausentar por alguns minutos.
Passados alguns instantes, que
pareceram muitos...
Marta ouviu a música que a
acompanhara nos últimos meses. Viu seu príncipe dos sonhos se materializar ali
mesmo: Paulo, ele era o dono daquela voz. Olhou seus olhos enigmáticos, sua
boca sedutora a cantar para ela. Sentiu-lhe o hálito, as mãos a lhe acariciar o
rosto. Fechou os olhos e se entregou, ali mesmo. Paulo a tomou nos braços e a
despiu. Cuidadosamente. Tocou-lhe o corpo com os lábios, acariciou-a como nunca
fora acariciada na vida e, finalmente... ela abriu os olhos e viu o rapaz,
ali, na sua frente, sorrindo.
- Que foi, Marta? A música era
tão ruim assim que você dormiu? Envergonhada, ela arrumou uma desculpa. Sabia o
que fazer. Tinha de fazê-lo, ainda mais depois daquele ‘sonho’... Mas esticaria
ao máximo aqueles momentos. Sim, vai ser quando ele me levar em casa...
decidiu.
Após o jantar, Paulo a levou até
a porta do hotel. Ao se despedir, pegou-lhe as mãos e, delicadamente, a beijou
na boca. Marta estremeceu, olhou nos fundos dos olhos de Paulo e, sorriu.
De mãos nadas, nada falaram.
As palavras não lhes
acrescentariam nada.
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