Pois é, mudar pra que?

 

O dia amanheceu frio, reforçando aquela vontade de ficar na cama até um pouco mais tarde, que esses dias trazem. Mas era preciso levantar e ‘começar o dia’, como afirmava seu velho pai. Assim, não teve outra saída a Pedro que não pular da cama e iniciar a labuta. Tomou um café rápido, comeu o pão com margarina, vestiu a camisa surrada, a calça, pôs uma blusa e saiu. Não eram sete horas quando ele já estava no ônibus, apinhado de gente, seguindo rumo ao centro. Após descer do ônibus ele andaria ainda por uns dois quilômetros, até chegar à obra, onde passaria o dia assentando tijolos, rebocando, fazendo subir as paredes do edifício.

Desceu do ônibus, apressado, pois não poderia perder tempo e precisava chegar no trabalho até as 7h30, pensou. E assim foi, em passos rápidos, quase correndo. A blusa que colocara ao sair de casa já não era mais necessária, visto que a caminhada aquecia o corpo, já quase suado com a movimentação ligeira. No trecho do ponto do ônibus até a obra, pôde ver inúmeras construções, casas grandes espaçosas, muito maiores que o barraco em que ele morava, na comunidade. 

Carros espaçosos nas garagens, moças brancas como louça, contrastando com sua pele mulata, resultado da união do seu pai negro e sua mãe, clarinha, que até se chamava Maria Clara, talvez pela alvura da pele, sabe-se lá... 

Muitas crianças já trajando uniformes escolares, aguardando o motorista da família retirar o carro da garagem, para seguirem até a escola. Foi vendo aquele movimento que não lhe trazia novidades, pois era assim mesmo, todo dia. 

Chegou na obra e já foi logo assumindo a sua função. Trabalhou o dia todo. Parou uma horinha para o almoço, em torno de uma marmita esquentada no fogo improvisado entre dois tijolos. Arroz, feijão, abóbora e ovo frito.

No fim da tarde, exausto ante o dia de trabalho, juntou suas coisas e foi voltando pelo mesmo caminho, as mesmas casas bonitas, o mesmo povo branco... 

Chegou na comunidade e foi direto para o boteco do Jorge, pediu a cachaça de costume, para ‘limpar a poeira da goela’ e um pedaço de ‘fissura de porco’ – iguaria das vísceras do animal, muito conhecida como bofe, que os mais endinheirados oferecem aos cães. Pegou um copo da cerveja recém-aberta pelo dono do bar e foi para perto dos amigos, para entrar na conversa que seguia animada. Falavam de política.

O João, o mais falante, lembrava que era preciso votar no ‘Dr. Márcio’, médico que enveredara pelo caminho da política e seria candidato a deputado. “Nós temos que votar no nosso amigo, o Dr. Márcio, ele vai dar um jogo de camisas para o time. Sempre apoia a gente”, foi dizendo quando um homem, de nome José, interveio e disse: “desta vez precisava de a gente mudar, escolher melhor. Tem a Marisa, que tem umas ideias boas, quer ajudar a garantir os nossos direitos lá na obra, fazer os patrões pagarem um salário melhor...”. 

“Opa, lá vem o Zé com essa conversa de esquerda... de comunista”, disse o João. 

“É, cala a boca, Zé, cê não sabe de nada”, afirmou o Mário. “Esse negócio de ‘lutar pelo direito’ é conversa fiada”, afirmou o Jair. E João, satisfeito com o apoio dos amigos continuou: “pois é, gente, o Dr. Márcio é nosso amigo, sabe do que a gente precisa, é um homem de fé, de família, não é igual essa Marisa, que fica aí colocando caraminholas na cabeça do Zé. Vamos todos votar no Dr. Márcio, é pronto!”.

E o Pedro, que até então estava calado, entrou na conversa: “é mesmo, João. Esse Zé não sabe nada, a tal da Marisa quer é criar problema. Vamos tudo com o Dr. Márcio!”. 

E bebeu mais uma cachaça, feliz com o seu posicionamento na discussão  e já se preparando para ir pra casa, comer a sopa de macarrão e dormir, porque no outro dia tinha que ir cedo para a obra. Mudar pra que?...

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