A gente precisa voltar para a realidade...
Ele levantou o rosto e olhou
adiante. O sol estava alto, a paisagem parecia paralisada, sem uma brisa sequer
a mover os ramos do mato, as folhas das árvores, à frente. Lá longe, avistava
parte do telhado da casa, onde Maria estava preparando o almoço. A fumaça na
chaminé subiu em flocos, o que denunciava agitação na cozinha, panelas sendo
colocadas e retiradas das trempes do fogão. O cão, latia insistentemente como
se a denunciar a chegada de visitas.
João então iniciou o caminho de
volta. Afinal, a fome já lhe dera alguns avisos e era hora de se fartar nos
pratos sempre muito saborosos da sua Maria. Foi andando, sem deixar de observar
no entorno do caminho, os pés de planta que precisavam de um cuidado maior, a
fruta que já poderia ser colhida no dia seguinte, a verdura que ainda cresceria
alguns centímetros...
Caminhou até próximo da árvore que
gerava sombra à entrada da varanda da casa. Ali, parou e viu que o Eustáquio
chegava para mais uma daquelas visitas. “Parece até que ele marca a hora de
chegar aqui, para filar a boia”, imaginou João, com seus botões. Não era usura,
mas toda semana uma visita na hora do almoço, ou do jantar, parecia coisa
marcada. Mas esse não era o maior problema, o pior de tudo era quando o danado
do Eustáquio começava a falar de política. Ah, as ideias dele eram muito
diferentes das de João e da sua Maria...
- Bom, Eustáquio?
- Oi João, anima, sô. Tudo ótimo,
afinal temos novidades no mundo.
- É? Sabia não, estava aqui mais
preocupado com as coisas da chácara, não tive tempo de saber das coisas do
mundo..., disse João já prevendo que seria mais uma daquelas visitas difíceis
de aturar. O Eustáquio até que era gente boa. O problema era que gostava de
querer doutrinar os amigos para acreditar naquilo que ele, parece, acreditava...
- Vamos lá dentro, experimentar o
tempero da Maria. O almoço já está pronto, convidou João para, quem sabe,
abreviar a prosa.
Lá na mesa posta na cozinha, um
almoço saboroso esperava pelos três. Arroz, feijão, três a quatro variedades de
verduras, um franguinho caipira no capricho, angu... Eles lavaram as mãos, se
sentaram à mesa e Eustáquio já foi se servindo, como era comum ocorrer, afinal
ele era “de casa”.
Maria, enquanto se servia
perguntou, inocentemente ao Eustáquio:
- E então, ‘seu’ Eustáquio, como
vão as coisas?
Foi a dica para ele começar a
prosa:
- Pois é, falei com o João, tem
novidade no mundo. O novo presidente dos ‘isteites’ – era assim que ele se
referia aos Estados Unidos – está tomando uma série de medidas que vão mexer
com a economia mundial. Ele lançou uma criptomoeda dele, que está muito
valorizada. Está querendo tomar o Canal do Panamá, pois aquele é um ponto de
grande interesse para a economia dos ‘isteites’. Por aqui, o dólar está lá nas
alturas e o governo não faz nada. Quer é taxar o pix... imagina, a gente nem
vai poder fazer transferência de mais de cinco mil, que eles já vão querer
saber o motivo, como se a gente tivesse que prestar contas a eles do dinheiro
que a gente gasta. Mas a exportação de grãos é recorde, o agro brasileiro continua
crescendo... vocês viram o doutor Jeová? Comprou uma Ferrari novinha... eita
homem bão tá ali... e ia emendando as ‘notícias’.
Maria, que deu motivo à disparada
das novidades anunciadas pelo Eustáquio, resolveu fazer o que antes não fizera:
cortou a fala do Eustáquio.
- Pois é 'seu' Eustáquio. O senhor
tem quantos dólares, mesmo? Ah, e essa tal de criptomoeda o senhor aplicou seu
dinheiro nela? O senhor sabe onde fica o Canal do Panamá, me mostra ali no
mapa... Falando nisso, quantas vezes o senhor fez uma transferência de R$ 5
mil, pelo pix, na sua vida? E quantas o senhor acha que ainda vai fazer? O
senhor está produzindo grãos para exportação? E falando nisso, o doutor Jeová
deu um aumento de salário para o seu menino, que trabalha feito um escravo na
empresa dele?
O Eustáquio ficou paralisado, sem
respostas, segurando uma coxa de frango que ia levar à boca. Uns 15 segundos,
imóvel, que pareceram horas, até que o João entrou na conversa:
- Depois do almoço e daquele
cafezinho, vou podar uns pés de frutas lá no quintal. Você quer me acompanhar,
Eustáquio?
- Vou sim, João, respondeu o
amigo. A gente precisa ter mais atenção nas coisas da gente, né, e deixar de se
interessar por coisas que a gente nem sabe direito o que é... Dona Maria tem
razão. Temos que voltar à realidade... E continuou a comer com apetite como era
de costume.
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